Não é verdade que o homem, propriamente e originalmente, aspira a ser feliz? Não foi o próprio Kant quem reconheceu tal fato, apenas acrescentando que o homem deve desejar ser digno da felicidade? Diria eu que o homem realmente quer, em derradeira instância, não é a felicidade em si mesma, mas, antes, um motivo para ser feliz.
Abordaremos a temática propósito e felicidade a luz do paradigma vontade de sentido. Embora tanto propósito quanto felicidade estejam em evidência em quase todas as discussões sobre carreira, o riquíssimo conceito de vontade de sentido ainda é pouco explorado, em especial no Brasil.
A vontade de sentido é o ponto central da obra do psiquiatra austríaco Viktor Frankl, criador da Logoterapia e Análise Existencial, também conhecida como a Psicoterapia do Sentido da Vida. Sua obra foi germinada em suas experiências durante a segunda guerra mundial, onde experimentou os horrores como prisioneiro dos alemães, sobrevivendo a quatro campos de concentração incluído o famoso e cruel campo de Auschwitz.
Enquanto Sigmund Freud defendeu que a motivação primeira para a vida humana tem como princípio o prazer e, de outro lado, Alfred Adler defendeu que é o poder, Frankl representou a Terceira Escola Vienense em Psicoterapia afirmando que o ser humano busca o sentido.
De uma forma simplificada, podemos dizer que o ser humano é dotado de uma vontade que o impulsiona em direção a busca por um sentido para sua vida. Essa latência está presente em todos nós, independente da nossa origem ou nossas experiências anteriores e, quando satisfeita, alimenta a vontade de viver, de vencer e de superar, estando na origem da determinação, além de retroalimentar o espírito.
Neste sentido, Frankl propõe também um novo olhar sobre a existência de uma hierarquia das necessidades, na forma proposta por Abraham Maslow, pois, segundo ele, quando as mais baixas não são satisfeitas, uma necessidade mais elevada, o desejo de sentido, pode transformar-se na mais urgente de todas, pois o sentido é a própria resiliência.
Claramente esse contraponto de Frankl é oriundo das suas próprias observações e experiências vividas nos campos de concentração onde seres humanos foram tratados piores do que se fossem animais. Em situações extremas, como as vividas pelos prisioneiros de Hitler, ter um sentido para viver, pode ser o ponto de corte entre a vida e a morte.
A partir deste entendimento, para encontrar o Fio de Ariadne que guiaria seus pacientes atormentados, costumava perguntar: “Por que não opta pelo suicídio?” Com a resposta ele encontrava, frequentemente, as linhas centrais da psicoterapia que aplicava: num caso, a pessoa se agarra ao amor pelos filhos; em outro, há um talento para ser usado, e, num terceiro caso, velhas recordações que merecem ser preservadas. Em todos existem filamentos para construir um padrão firme, com sentido e responsabilidade. A busca existencial passa por encontrar esses filamentos que são presentes na vida de todos os indivíduos.
Dê uma pausa na leitura deste texto para identificar os seus próprios filamentos, respondendo a seguinte pergunta: Por que é importante você estar vivo?
Se você se dedicou para a atividade acima é muito provável que nesta pequena lista esteja relacionado algumas das questões mais importantes da sua vida. Provavelmente, são essas questões que dão sustentação para você em momentos difíceis, sendo a razão para a sua resiliência e, ao mesmo tempo, são estas questões que, quando está indo tudo bem, lhe trazem uma profunda sensação de realização. A responsabilidade lhe dá sentido e o sentido lhe dá responsabilidade.
A felicidade não tem um fim em si, o que o ser humano realmente quer é um motivo, um sentido, um “porquê” ser feliz que o autotranscende. Construir sentido e responsabilidade é a base da vida plena. A autorrealização não constitui a busca última do ser humano, e assim como a felicidade, a autorrealização aparece como efeito, isto é, o efeito da realização de um sentido
Vejamos a figura abaixo:
O esquema da figura, retrata o ser humano, que tomado pela sua vontade de sentido, encontra uma razão para ser feliz e, então, a felicidade surge como um mero efeito dessa razão.
Todavia, o que percebemos é que, na maioria das vezes, a busca pela felicidade não é mediada pela sua razão (pelo porquê), tornando-se uma procura direta da felicidade pela felicidade, através da busca compulsiva pelo prazer e sucesso que acabam gerando, ao fim e ao cabo, frustrações e vazio existencial – um princípio autoanulativo!
Quanto mais o ser humano busca a felicidade como finalidade em si, como intenção primeira da vida, mais ela se distancia, como uma borboleta fugindo do seu caçador.
Este hipercaçador da felicidade se motiva e se retroalimenta pela esperança de alcançar seu objeto de desejo, perseguindo um prazer e um poder tão fugaz e insatisfatório, trazendo frustrações e levando ao vazio existencial.
Não há atalhos no caminho da realização existencial. Embora a Psicologia Positiva reconheça três tipos de bem-estar: o bem-estar proporcionado pelo prazer imediato (hedonismo), o bem-estar proporcionado pelo sucesso (sentir-se capaz) e o bem-estar proporcionado pela prática das virtudes (sentir-se merecedor), é através de um significado que essas sensações nos preenchem de fato e com consistência.
Todavia, quando nos referimos ao sentido existencial, costumamos pensar em uma razão única, que perdurará ao longo de nossa vida sem qualquer alteração. Algo tão grandioso que se torna inimaginável. No entanto, o sentido não é algo que encontramos, ele é construído. Podemos dar sentido para qualquer coisa que estejamos fazendo neste momento. Podemos ter um sentido que norteie esse nosso momento de vida, como um ciclo da nossa existência.
O sentido da vida é unipessoal e depende do momento do ciclo de vida de cada pessoa, não sendo um sentido da vida único. Formular essa questão em termos gerais seria comparável a perguntar a um campeão de xadrez qual é o melhor lance do mundo. Simplesmente não existe algo como o melhor lance. Um bom lance está relacionado a uma situação específica de um jogo de xadrez, além da personalidade peculiar do jogador e de seu oponente.
Um propósito de vida (sentido existencial) é único e jamais pode ser substituído por qualquer outra pessoa, nem tampouco em um momento diferente do ciclo de vida daquele indivíduo. Não existe replay na vida, tudo é singular. Todavia, sempre haverá a possibilidade para dar um novo sentido e cumprir a vida, como quem cumpre uma missão – sua própria missão.
Quando o ser humano passa a cumprir sua própria missão ele regula sua marcha e o seu ritmo, compreendendo a marcha da vida e a forma de se posicionar frente a ela. Passa a compreender o que precisa ser feito. Como alerta o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung dentro da sua experiência clínica, o problema de 1/3 dos seus pacientes não é diagnosticado clinicamente como neurose, mas resulta da falta de sentido de suas vidas. Isso pode ser definido como a neurose geral de nossa época!
FRANKL, V. E. Psicoterapia para todos (A. Allgayer, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes, p.11, 1990.
PEREIRA, Ivo Studart. A vontade de sentido na obra de Viktor Frankl. Psicologia USP, v. 18, n. 1, p. 125-136, 2007.
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