Entrevista com Maria Célia Lassance, referência internacional em carreira, doutora em Psicologia pela UFRGS, fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Orientação Profissional (ABOP).
Maria Célia: Eu não gosto de generalizar, porque a perspectiva com a qual trabalhamos, oLife Design,lida com a ideia das carreiras individualizadas. Isso é, fazer carreira é perceber qual é o sentido do trabalho na vida do indivíduo. Como o indivíduo insere o trabalho em todos os papéis que ele vive. Porque não somos só trabalhadores, né? Eu sou trabalhadora, sou mãe, sou avó, sou filha, sou amiga, sou voluntária. Enfim, eu exerço vários papéis. Então, sabendo o sentido do trabalho na minha vida é possível entender como é que minha carreira pode se desenvolver para orientar e satisfazer os objetivos que tenho, os meus valores.
Gosto muito da ideia da carreira em T, porque temos um core de carreira e aprendemos sobre outras coisas, há espaço para conhecimentos complementares. Eu sou psicóloga, trabalho com carreira, mas hoje eu preciso saber como as pessoas constroem a sua vida digital, como a economia anda, conhecer contextos culturais diferentes. O T permite um espaço muito importante para as soft skills. Então partimos desse princípio: as carreiras são individualizadas. Embora, em determinados contextos, elas tenham a mesma direção, os objetivos são do indivíduo.
Também gosto muito da carreira caleidoscópica,que é a ideia de que a gente muda o foco ao longo da nossa vida. Às vezes o trabalho está no foco central, mas em determinados momentos outras áreas da vida vão para o centro. A gente vai se adaptando a esse mundo mutante. Esse modelo de pensar carreira inclui mudanças de vida. Um grande exemplo é a maternidade, que muda nosso foco de interesse, muda as possibilidades de inserção no trabalho. É preciso recalcular a rota e reorganizar a vida para inserir esse papel, que passa a ser central.
Maria Célia: Eu trabalho com carreira há 40 anos, então eu passei por várias crises e por várias formas de pensar. Mas nunca houve um tempo tão desafiador para as pessoas se inserirem e perseguirem seus objetivos de carreira. Há alguns anos eu ensinava a fazer um planejamento para os próximos 5, 10, 20 anos. “O que você quer, quais seus objetivos, seu propósito, que metas SMART podemos estabelecer…”. A pessoa saía do aconselhamento de carreira com um projeto, um planejamento.
Hoje é difícil falar dessa maneira, pois as circunstâncias mudam com muita rapidez. Por isso temos falado em carreira sustentável,que é a carreira para além de um projeto a curto prazo. Ela tem alguns temas centrais:
1.O primeiro deles seria a saúde física e emocional.É preciso cuidar da saúde para que possamos trabalhar. Ansiedade e depressão são circunstâncias que nos rondam, muito em função das dificuldades da vida, da pandemia, o isolamento, o medo que desenvolvemos de tudo e de todos, medo de sair de casa, de visitar pessoas. Esse olhar é essencial e o mais importante.
2. O segundo nível é a segurança, que é o planejamento financeiro, o cuidado com as circunstâncias da vida agora e no futuro. As pessoas dizem: “nesse momento eu não tenho condições de economizar, mal consigo ganhar para prover minha vida material”. Quando olhamos para segurança no futuro achamos que temos que começar de um patamar muito alto. Mas tenho ensinado os meus clientes que são mais jovens, na faixa dos 30 anos, por exemplo, a fazerem planos de previdência e de investimento com poucos recursos, com o que hoje é possível. Dá para começar com R$ 100 por mês. O importante é criar esse hábito. Porque se a pessoa não tem nenhuma reserva, não consegue nem se qualificar em um momento de necessidade, não pode trocar de trabalho, fica presa onde está.
3. O terceiro elemento é a adaptabilidade, que é o conceito que permeia hoje toda a teoria de carreira contemporânea. Ela inclui recursos para que possamos, justamente, estar prontos para as mudanças que virão. A gente ouve que sorte é junção da preparação com a oportunidade. Não adianta ter oportunidade e não estar preparado.
A adaptabilidade de carreira envolve dimensões que podem ser desenvolvidas. Que dimensões são essas?
4. Outro tema da carreira sustentável são as competências interpessoais e habilidades sociais. Eu preciso saber tratar o outro, ter empatia, autogerir meus sentimentos, de forma a não ser hostil, preciso aprender sobre assertividade, conhecer como reajo ao estresse. Com isso, posso começar a alinhar minhas competências, a partir desse autoconhecimento e dessa confiança, com a realidade do mercado. Não adianta eu ter um conjunto de competências se o mercado não vai me comprar. Eu não posso querer ser instrutora de esqui na neve e ficar no Brasil. É preciso fazer esse alinhamento: conhecer o mercado, as possibilidades e saber o que preciso desenvolver para chegar onde quero, a partir das minhas habilidades.
5. Outro ponto importantíssimo é fazer uma gestão da credibilidade. Qual é a minha reputação? Pelo o que que eu quero ser reconhecida? E essa é uma questão interessante, porque no começo da carreira a gente não sabe bem o que é. Esperamos ser reconhecidos lá adiante. Mas quais são as competências que, se reconhecidas, vão me levar adiante?
6. É a questão da proposta de valor: o que eu ofereço que as pessoas querem? O que eu faço que é importante para essa organização? Como as pessoas estão vendo minhas contribuições? É fundamental fazer essa gestão de reputação.
7. E o último aspecto é a realização, que é chegar a um propósito. Isso parte, claro, dos valores individuais.
Então temos definido e trabalhado a sustentabilidade da carreira, não mais a progressão, como era antigamente. É preciso ter sustentabilidade para não ficar sem trabalho e renda em algum momento.
Maria Célia: Esse é um ponto mais difícil, saber o que coloca uma carreira em risco, porque é algo muito individual.
Hoje parece que existe uma indústria da carreira. Todo mundo tem que ser super proativo, se expor a altos riscos, como grandes empresários, todo mundo tem que ser super extrovertido, fazer networking etc etc. Mas o pensar sobre carreira contempla também traços de personalidade.
Algumas pessoas não têm muita abertura a novas experiências e querem uma carreira segura. Então o que eu diria para essas pessoas não fazerem e se lançarem como empreendedoras. Tem gente que é muito feliz e se dá muito bem fazendo um concurso para uma posição em que ela sabe exatamente o que vai fazer, e essas pessoas ficam satisfeitas e realizadas em saber que nos próximos 30 ou 40 anos vão fazer aquilo. Isso é ruim? Não. É o jeito da pessoa construir a própria carreira.
A gente tem que traçar planos e metas que estejam de acordo com as nossas competências, com as nossas capacidades e com os nossos objetivos reais de carreira, não ficar comparando e tentando desenvolver coisas que nos deixam ansiosos, assustados. Claro que todo mundo, com treino, com ajuda, pode conseguir realizar muitos planos, mas para algumas pessoas alguns projetos “comprados” são um sacrifício. Aí entra o autoconhecimento: quem sou eu e como eu quero construir uma vida profissional realizadora?
Então, comprar essa ideia de super risco, que todo mundo precisa ser um Elon Musk, inventar a Tesla, o Facebook, muitas vezes é algo a não fazer. A vida não funciona assim para todas as pessoas.
Maria Célia: Todo mundo já sabe que as organizações são feitas de pessoas. Existe, cada vez mais, um cuidado por parte das organizações com a saúde mental, treinamentos de lideranças para que as equipes tenham mais segurança psicológica para propor soluções, para discordar.
Entretanto, apesar desse projeto das organizações, o treinamento não é individualizado a ponto de que o líder se veja como um obstáculo ao crescimento da sua equipe ou um obstáculo no alcance do próprio propósito da empresa. É preciso que haja uma articulação em torno desse propósito.
A segurança psicológica é, basicamente, atribuição e responsabilidade das lideranças. E é onde as organizações podem atrapalhar o desenvolvimento das pessoas.
Eu conheço muitos setores de recursos humanos e gestão de pessoas, que oferecem todo tipo de treinamento. As pessoas vão para o treinamento e é como quando leem um livro de autoajuda, saem dali e vão fazer como sabem. Porque é aquele lufa-lufa do dia a dia, que vai atropelando as possibilidades de mudança.
Os processos tradicionais de treinamento não estão conseguindo contornar isso. É preciso inovar no sentido de trazer as pessoas, principalmente as lideranças, para os propósitos maiores da empresa.
Porque eu não conheço nenhuma organização que diz: “aqui nós vamos criar um clima infernal de trabalho, para que as pessoas adoeçam”. Isso não existe. Mas como é que não estão alcançando as pessoas com eficiência, para que isso possa mudar?
A psicologia positiva tem proposto alguns paradigmas muito interessantes de liderança autêntica e algumas organizações já compraram a ideia e trabalham nesse sentido. Mas é um trabalho de formiguinha, que vai crescendo. E talvez um dia a gente ache a fórmula do treinamento que efetivamente modifique as pessoas.
Maria Célia: Justamente na confluência entre a preparação e a oportunidade. As oportunidades não brotam por aí, muitas vezes a gente tem que cavar ou construir essa oportunidade. É preciso, pelo menos, se mostrar merecedor dela. Então a mentoria de carreira atua na construção de como o indivíduo pode enfrentar esses desafios e se qualificar para essas oportunidades.
Claro que levamos em consideração que algumas pessoas precisam de oportunidades de trabalho e não estão podendo escolher. Porque a gente não faz aquilo que quer, deseja, almeja e sonha, simplesmente. A gente faz aquilo que é possível, na direção do que a gente deseja, almeja e sonha. A mentoria ajuda naquilo que é possível fazer hoje para aumentar a possibilidade de ir adiante.
O conhecimento está aí, em um treinamento, no YouTube, em uma pós graduação, um curso formal ou informal. Mas o mentor pode ser aquele elemento que traz a expansão dos meus horizontes. Para que, aí sim, eu esteja preparado para aproveitar as oportunidades.
Eu só gostaria de reforçar que cada pessoa precisa pensar a sua carreira de forma individualizada. Não comprar a carreira dos outros. Há alguns anos, se dizia: “agora todo mundo tem que aprender mandarim, esta é a competência do momento”. E muitas pessoas se atiraram a aprender mandarim porque a China era o grande mercado. Hoje, 99,9% dessas pessoas não usaram o idioma. Algumas até foram para a China negociar e trabalharam em inglês.
Então é preciso se conhecer, fazer uma leitura realista do próprio contexto. Tanto para mais quanto para menos. Algumas pessoas não acreditam nas suas potencialidades, outras acreditam ter potencialidades que, efetivamente, não têm. Essa leitura realista permite se posicionar de forma correta e não adoecer.
→→ Conheça nosso assessment gratuito Adaptabilidade de Carreira, Segurança Psicológica e Valores Organizacionais e mensure sua adaptabilidade. Clique aqui.