Além dos problemas bem conhecidos, como desigualdade salarial e o assédio, as mulheres podem passar por outra questão nas organizações: o sentimento de precisar se masculinizar para serem ouvidas.
Isso ocorre quando elas acabam assumindo comportamentos socialmente relacionados a homens. Tais estereótipos masculinos incluem características como firmeza, objetividade e foco em resultados, enquanto os femininos prezariam pelo lado emocional, de suporte e cuidado.
Alguns exemplos de masculinização na cultura e na história são emblemáticos.
Maria Quitéria, por exemplo, teve que se “camuflar” como um homem para poder entrar no Exército – e ser a primeira mulher a participar da instituição. O clássico da Disney Mulan mostra uma trajetória parecida, onde a protagonista finge ser um guerreiro para lutar contra um ataque inimigo.
Já George Eliot escolheu esse pseudônimo para sua escrita ser levada a sério. Chamada de “escritora insurgente” por seus contemporâneos do século XIX, Mary Ann Evans preferiu publicar seus livros com um nome masculino inventado, para também poder separar sua vida pessoal da obra.
Atualmente não enxergamos esse acontecimento de forma tão nítida; ele ocorre de maneiras mais sutis. Mas é inegável que persiste, como mostram os dados e os diversos relatos.
Segundo pesquisa da Barbara Annis Associates, 82% das mulheres se sentem excluídas no ambiente de trabalho – seja em reuniões formais ou conversas informais, eventos ou em relação a feedbacks.
Outra pesquisa revelou que mais da metade das lideranças femininas que desistiram de seus postos optaram pela saída devido à diferença de tratamento e de valorização entre homens e mulheres, o que gerou falta de oportunidades e sentimento de exclusão.
Qual o resultado? Muitas mulheres escolhem seguir características mais “masculinas” a fim de serem levadas a sério.
Pode acontecer através de uma postura mais firme, mas também ocorre mesmo esteticamente: há diversos relatos de mulheres que usam maquiagem com cores mais neutras e roupas unissex, mesmo inconscientemente. Nossa parceira Cleo Fischer e Petula Borges, sócia da SBDC, vivenciaram na pele.
Cleo é socióloga, especialista em gestão de pessoas e mentora de mulheres. Trabalhou por 23 anos como executiva no ramo de tecnologia, setor conhecido pela discrepância entre os gêneros: apenas 16% dos chefes são mulheres. Ela relata que,
Comecei a usar muito terninho, aquela camisa com corte tradicional que lembra a alfaiataria masculina. Nunca tive cabelo curto nesse período, mas usava muito cabelo preso. [Quando olho fotos daquela época, eu estava] quase sempre com o cabelo preso e maquiagem levinha. Esmalte mais clarinho, mais discreto. Tinha até um meme: o [batom] cor de boca era o novo vermelho das mulheres da tecnologia.
Petula complementa com seu relato:
“Na maioria das vezes, nos grupos gerenciais, eu era a única liderança feminina. Isso fez com que eu imprimisse um papel – tanto na minha atuação e às vezes até mesmo na minha forma de me vestir -, uma energia, muito mais masculina do que feminina. Então a gente tem esse desafio de equilibrar isso e respeitar esse feminino e fazer ele ser respeitado de uma forma saudável.”
Com relação às mulheres, existe a mentalidade da “incongruência” entre o papel social atribuído a elas e o papel idealizado de um líder. Se espera características amigáveis e cooperativas nas mulheres, e proativas e agressivas nos homens – algo que não ocorre com a frequência imaginada.
Da mesma forma, as mulheres são avaliadas mais negativamente do que os homens em momentos de expressar raiva, por causa desse viés inconsciente. Subir o tom é algo normalizado para os homens.
Além disso, existe também o estereótipo da “super-mulher”, a líder como um modelo que concilia a casa e o trabalho.
Tudo isso leva a tentativas, até mesmo inconscientes, da mulher parecer mais como um homem para evitar esses preconceitos – e, assim, liderar tendo a atenção devida.
A grande questão para as organizações é: com todos iguais e masculinizados, para onde vai o pensamento lateral e divergente, e a inovação?
Pode soar clichê, mas é essencial que as organizações incentivem a individualidade das características e o jeito de ser de cada um. Por mais que a tradição possa ser um ponto forte da cultura de uma empresa, a diversidade de pensamentos e hábitos apenas tem a agregar na equipe.
E esse incentivo a individualidade acontece de diversas formas.
Existe o fenômeno conhecido como “degrau quebrado”, quando há equidade de gênero na base, mas não no topo. Assim, é preciso planos robustos para avançar, que incluem desde treinamentos de vieses inconscientes para líderes até vagas específicas para mulheres e metas claras.
Ademais, muitas mulheres postergam o sonho da maternidade para não perderem seus empregos – algo que não acontece na mesma escala com os homens que desejam ter filhos. A mulher negligencia, assim, suas próprias aspirações. Desse modo, um desses incentivos pode ser o cuidado com o desejo da maternidade: propiciando condições seguras para a gestação e a posterior volta ao trabalho.
Mais do que discurso, o pilar social do conceito ESG (Ambiental, Social e Governança, da sigla em inglês) deve ter desdobramentos práticos. Trazer a diversidade para o ambiente de trabalho é comprovadamente potencializador da segurança psicológica e dos sentimentos de bem-estar, pertencimento e motivação.
Ainda em relação ao ESG, a ONU Mulheres e a Pacto Global lançaram o Movimento Elas Lideram, que almeja atingir 50% de lideranças femininas nas organizações até 2030. É esperado que mais de 11.000 mulheres alcancem altas posições nesse período.
Além disso, o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 5 (ODS 5) da ONU fala sobre “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
Assim, é fundamental perceber que, além dos pontos discutidos aqui, existe a própria noção social de que cargos de liderança são masculinos – feito para homens -, o que afasta muitas mulheres que gostariam de obtê-los. Liderança não deveria ter gênero, então por que continuar com um sistema que privilegia a ascensão masculina?
Por fim, o relatório “A diversidade como alavanca de performance” mostrou que, dentre mil companhias, as que apostam na diversidade de gênero entre seus executivos estão 21% mais propensas a ter lucratividade acima da média. E esse é apenas um dos benefícios.
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A SBDC possui um Programa de Desenvolvimento de Lideranças Femininas (PDLF). Nele, trabalhamos os principais vieses individuais e organizacionais que impedem a ascensão de mulheres nas empresas. Para saber mais, clique aqui.